[Terra Morta RPG] Capítulo 19 - Jonas
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Qual o seu nome?
Ainda amarrado junto à cama,
arriscou perguntar mais uma vez quando a menina trouxe-lhe água. Era uma
loirinha magricela, de pele clara e olhos azuis, assustados. Deve ter uns nove ou dez anos, pensou.
Vê-la fazia com que se lembrasse da garotinha morta que vira no hotel naquela
manhã, caminhando em silêncio ao redor da piscina de corpos. Recebeu um destino pior que a morte, a
pobrezinha.
- Gabriela – a voz o puxou para fora
de seus devaneios. Surpreso, não fez nada senão encarar a menina por um longo
momento. Não esperava que ela fosse responder, tal qual acontecera nas outras
duas vezes em que tentara.
- Posso te chamar de Gabi? – quando
ela consentiu, ele sorriu e continuou. – Me chamo Jonas, Gabi. Sabe me dizer
por que seu avô me manteve preso aqui até agora?
Gabriela o estudou com os olhos,
como que ponderando quanto a continuar ou não conversando com ele. Pareceu
optar por continuar.
- Ele disse que não podemos confiar
em você. Disse que você pode ser como os outros.
- Outros? – Jonas já conhecia a
resposta para aquela pergunta, mas viu-se perguntando assim mesmo.
- Pessoas ruins que nos visitaram
antes de você.
A menina olhava nervosamente para a
porta enquanto conversavam.
- Onde está seu avô?
- Lá embaixo – ela respondeu sem
olhá-lo. – Está tentando bloquear a porta de entrada.
Tentando.
Aquela não era uma boa notícia. Lembrava-se de ter sido seguido até ali, mas
não conseguia, por mais que se esforçasse, recordar a quantidade de inimigos
que trouxera consigo para aquele lugar. Não
importa. Se conseguirem entrar, estou morto. Não posso nem ao menos me mexer.
A menos que tentasse algo a
respeito.
- Gabi – chamou, e a menina voltou a
encará-lo -, poderia me libertar? Para que eu possa ajudar seu avô a manter os
monstros longe daqui.
Aquilo não era, de todo, uma
mentira. Não queria nenhum mal para com aqueles dois, mesmo nas circunstâncias
atuais. Não por ele, mas pela menina.Não
posso deixar que seja pega por aquelas coisas. Mas ali, amarrado, não
poderia fazer nada. Se os mortos entrassem e Gabriela e o avô fossem pegos, ele
também morreria.
- O que me diz? – insistiu. – Eu
posso ser útil.
- Não posso. O vovô não iria gostar
nada disso.
Jonas tentou pensar rápido, buscando
por um novo argumento que pudesse ser usado para persuadir a menina. Mas
durante aquele breve momento de silêncio ouviu algo que lhe chamou a atenção.
Parecia distante, mas ainda assim o ouvia. Um
miado.
- Pacheco – disse. – Onde ele está?
- Quem é Pacheco?
- Meu gato.
- Meu gato – ela corrigiu com indiferença. – O chamei de Almôndega.
Ouvir aquilo o divertiu. Tentou se
conter, mas quando a risada chegou aos seus lábios, apenas deixou-a transbordar
para fora.
- Por que está rindo? – Gabriela
mostrou-se visivelmente ofendida. – Era o nome de meu antigo gato, tá? Mas ele
morreu, e agora consegui outro.
- Não, querida, desculpe. Ele não é seu gato.
Pacheco era seu companheiro há anos.
Não permitiria que a menina o roubasse assim, sem mais, nem menos. Quando
estivesse livre, poderia pegar o gato e tratar de fugir logo dali. Então se
lembrou que, primeiro, precisava sair dali.
- Me liberte, e prometo deixá-lo com
você – mentiu.
- Mas ele já é meu – respondeu ela
com um bico. – Não preciso da sua permissão.
Ah,
sua danada. É mais esperta do que aparenta.
- Meu avô queria se livrar dele, mas
não deixei – Boa menina, Jonas
pensou. – Mas ele estava muito agitado, e tive que deixá-lo trancado no meu
quarto.
- Escute, Gabi, preciso que me
liberte. Não pretendo fazer nenhum mal a você ou ao seu avô, tudo o que quero é
ajudar.
Encarou-a, mas ela não conseguiu
suportar o olhar por muito tempo e se virou.
- Por favor – insistiu ele.
- Tudo bem – ouviu-a dizer, ainda de
costas. Sentiu, pela primeira vez naquele dia, uma fisgada de esperança. Não
conseguiu conter um sorriso. – Mas o vovô...
Então ela se calou. Jonas ouviu
passos vindos do corredor, e quando olhou para a porta confrontou o olhar frio
do velho parado ali.
- Gabriela, vá para o seu quarto.
Preciso conversar com ele – disse num tom autoritário que dispensava recusas.
Cabisbaixa, a menina deixou o quarto sem olhar para trás num só momento.
Sem dizer palavra, o homem se
encaminhou até onde Jonas estava e se sentou ao pé da cama. Jonas pensou em
dizer algo, mas optou por esperar e ouvir o que o outro tinha a dizer.
- Qual seu nome, rapaz?
- Jonas – respondeu.
- Me chamo Miguel – Jonas se limitou
a acenar com a cabeça. – Gostaria de me desculpar pela forma que agi, hoje mais
cedo. Me trouxe um problemão, Jonas.
Aquilo
o pegou de surpresa.
- São tempos difíceis, esses. Quando
me seguiu para cá, trouxe alguns amigos com você – disse. – Há quatro deles lá
fora. Bloqueei a porta de entrada com alguns pedaços de tábua, mas não sei se
será o suficiente para contê-los por muito tempo.
- Poderia me libertar – Jonas
sugeriu. – Para que eu possa ajudá-lo.
Levou um momento até que Miguel
respondesse.
- Te libertar? – repetiu ele. – Me
desculpe, Jonas, mas não estou certo de que possa confiar em você ainda –
Miguel levou uma das mãos ao rosto, massageando a têmpora. – Estou cansado,
Jonas. Cansado disso tudo. Teria desistido há muito tempo, se não por minha
neta. É por ela que continuo lutando para sobreviver. Sou tudo o que resta para
ela, e Deus sabe que ela é tudo o que me resta.
- Ao menos me deixe ir embora, então.
Pego meu gato, parto, e vocês nunca mais precisarão me ver novamente.
Miguel franziu o cenho.
- Você atrai a desgraça até minha
casa, e agora quer partir e dar as costas para os problemas que você nos
arrumou?
- Escute a si mesmo – Jonas se
esforçou para inclinar o corpo o máximo que conseguiu. Olhou-o nos olhos. – Eu
me propus a ajudá-lo, e você recusou. E agora quer me impedir de ir embora,
alegando que estou dando as costas para essa merda toda?
Quando Miguel não respondeu, ele
continuou.
- Se prefere me deixar apodrecendo
nessa cama, ótimo. Mas quando aquelas coisas entrarem, acredite, não serei o
único a morrer quando você se descobrir incapaz de se defender sozinho. Vai me
acompanhar para a cova. E sua neta também.
O velho ergueu os olhos claros para
encará-lo. Um olhar gélido, desprovido de qualquer calor. Abriu a boca para
responder, mas no segundo seguinte voltou a se calar. Virou-se para a porta.
- Então, não vai dizer nada? – Jonas
insistiu.
- Fecha a merda da boca. Escute.
E Jonas escutou. Levou algum tempo,
mas por fim ouviu o som contínuo de passos vindos do andar de baixo. Ouviu um
grunhido, seguido de outro, e mais outro. Eles haviam entrado.
- Gabriela – ouviu Miguel sussurrar
para si mesmo, temeroso para com a neta.
Antes que Jonas pudesse dizer
qualquer coisa, o velho se levantou e correu para fora do quarto. Lançou um
olhar por sobre os ombros, para Jonas, e trancou a porta quando saiu, selando-o
lá dentro.
- MALDITO! – Jonas gritou. – Eu
posso ajudar!
Os minutos se arrastaram longa e
tortuosamente enquanto esperava. Conseguia ouvir o barulho eu vinha do primeiro
andar, e por um momento pensou ter distinguido a voz de Miguel em meio aos
berros inumanos dos invasores. Suava frio, temeroso quanto ao que pudesse estar
acontecendo lá. Trancado e amarrado naquele quarto, se Miguel e Gabriela fossem
mortos, logo seria a sua vez. Mesmo que os inimigos não o alcançassem, a fome e
a sede uma hora o fariam, e então iriam se saciar com sua vida.
Jonas sentiu um aperto gelado na
garganta quando ouviu os passos no corredor, do lado de fora do quarto. Ouviu o
trinco se abrir, viu a maçaneta girando, e então Gabriela entrou com um salto, assustada,
para logo em seguida voltar a fechar a porta. Quando se virou, Jonas reparou,
tinha sangue nas roupas. Em sua mão, uma faca. Estremeceu.
- Gabi? – disse. – O que aconteceu?
Ela não respondeu. Caminhou em
silêncio até a cama, a lâmina vermelha de sangue se erguendo acima de seus
dedos trêmulos. O avô morreu, e agora ela
veio me matar, pensou ele. Engoliu em seco e arriscou perguntar mais uma
vez:
-
O que aconteceu lá embaixo, Gabi?
-
Vovô foi pego – foi tudo o que ela disse, e Jonas percebeu que a menina lutava
para conter o pranto evidente em sua voz embargada.
Idiota. Eu avisei que
poderia ajudar. Mas não me ouviu.
Então
viu a menina guiar a faca em sua direção, e soube que seria esfaqueado. Fechou
os olhos e, quando o fez, sentiu o aperto firme da corda em seu pulso direito
afrouxar. Voltou a olhar, e encontrou a mão direita livre. Gabriela lhe
entregou a faca, e ele mesmo se encarregou de cortar o restante das amarras.
-
Há quantos deles lá fora? – perguntou enquanto massageava os pulsos e canelas
em carne viva, cerrando os dentes frente à dor.
-
Três lá embaixo – Gabriela respondeu. – E um outro me seguiu aqui para cima,
mas não me viu entrando no quarto.
-
Onde está o Pacheco?
-
Almôndega – a menina corrigiu.
-
Que seja – Jonas revirou os olhos. – Cadê o gato?
-
No meu quarto, no andar de baixo.
Jonas
acenou com a cabeça.
-
Certo – disse. – Vamos pegá-lo, e então saímos daqui.
Então
abriu a porta, e quando espiou o lado de fora, encontrou o inimigo vagando no
fim do corredor; o homem devia estar na casa dos quarenta anos. Trajava um
uniforme médico empapado de vermelho, sangue. Tinha um dos olhos roxo e
inchado, adornado por uma crosta escura de sangue seco. Mas o outro, são,
corria pelo corredor de canto a canto, buscando o paradeiro da menina a qual
seguira até ali.
Quando
avistou Jonas, urrou feito um animal e começou a correr, os braços esticados e
prontos para agarrá-lo quando estivesse no alcance. Mas o rapaz agiu depressa,
e se jogou para o lado a tempo de evitar a investida. Então contra-atacou, e o
sangue esguichou quando a lâmina abriu um talho na garganta do homem, de orelha
a orelha.
O
filho da mãe tentou continuar de pé, agitando os braços enquanto se afogava no
próprio sangue, mas não demorou para que tombasse. Jonas voltou para dentro do
quarto, onde Gabriela o esperava, e puxou-a pela mão enquanto seguia pelo
corredor em busca da escada que os levaria para o primeiro andar.
-
Onde fica seu quarto? – perguntou à Gabriela. – Não conheço a casa, precisará
me guiar.
-
Descendo a escada, no corredor da esquerda. É a primeira porta.
Desceram
a escada com cuidado, atentos a qualquer sinal dos inimigos que se encontravam
lá embaixo. Mas não encontrou nenhum obstáculo nessa parte do percurso, e logo
estavam em frente ao quarto. A porta era cor-de-rosa, com o nome “Gabi” pintado
na madeira em diversificados tons de azul. Encontrou Pacheco dormindo sobre a
cama, lá dentro, aconchegado em meio a uma dúzia de ursos de pelúcia.
Quando
o viu entrar, levantou a cabeça com curiosidade e miou. Jonas o pegou sem dizer
palavra, não tinham tempo para dengos e brincadeiras. Com uma mão manteve o
gato junto ao peito, enquanto segurava a mão de Gabi com a outra. A menina o
guiou por dois corredores repletos de portas, e Jonas ficou surpreso com o fato
de a casa ser ainda maior do que poderia ter imaginado a princípio.
-
Tem alguma forma de sairmos que não seja usando a porta da frente? – perguntou,
tentando ignorar os arranhões de Pacheco em seu braço enquanto avançavam.
-
Podemos sair pela cozinha – Gabriela respondeu. – Mas precisaríamos passar pela
sala, de um jeito ou de outro. É lá que os monstros estão.
-
Teremos que enfrentá-los de uma forma ou de outra, então.
Gabriela
consentiu, e Jonas sentiu um calafrio.
Jonas
inclinou a cabeça apenas o suficiente para que pudesse espiar para dentro da
sala. O cômodo era bastante grande, belamente decorado com móveis de aparência
antiga. O cadáver de Miguel estava sobre o tapete, no centro da sala. Tinha o
rosto inchado e ensanguentado, provavelmente devido a pancadas desferidas por
seus assassinos, e incontáveis mordidas haviam-lhe tirado parte da carne do
pescoço e dos braços.
Só
havia um zumbi ali, parado próximo à porta enquanto lambia o sangue fresco nos
próprios lábios descarnados. Para onde
foram os outros dois?, Jonas perguntou mentalmente...
...
e a resposta veio sem avisar. Ouviu o grunhido às suas costas a tempo de se
abaixar. Sentiu as garras de Pacheco se enterrando em seu braço em meio aos
miados desesperados quando o forçou contra o peito. Se virou quando ouviu
Gabriela gritar, tarde demais. Um dos inimigos a havia erguido nos braços, e o
outro segura uma de suas pernas enquanto abocanhava-lhe a carne pela segunda
vez.
O
sangue escorreu abundante para o piso, e por um momento Jonas não soube o que
fazer. Gabriela já não se mexia. Não havia mais nada que pudesse fazer pela
garota, então se virou e correu para dentro do cômodo. Parou de chofre ao
ver-se frente a frente com o terceiro inimigo.
Ele
investiu, mas Jonas não recuou. Se jogou para frente e sentiu os dois corpos se
chocando, e no momento seguinte estavam no chão. Pacheco se libertou e correu
para longe do conflito, e o rapaz prensou os braços do inimigo com os joelhos,
impossibilitando que pudesse ser agarrado. Então segurou a faca com ambas as
mãos.
-
Isso é pelo velho – sussurrou, e desferiu o primeiro golpe no braço esquerdo.
Sentiu os músculos e tendões se romperem quando a lâmina pressionou a pele e
invadiu a carne, e o sangue saltou para fora.
-
Isso é pela menina – e o braço direito sofreu do mesmo destino do esquerdo.
A
sensação era boa, percebeu. A vingança. Sim.
Naquele momento, sentia-se vingado. Mas não por completo. Não ainda.
-
E isso é por mim mesmo - e quando a lâmina perfurou o crânio e deslizou para
dentro da têmpora do inimigo, Jonas sorriu.
O texto acima não tem
qualquer vínculo com a história original de Terra Morta e nem foi escrito por
Tiago Toy. É uma adaptação do RPG mestrado no Orkut por Luan Matheus, escrita
pelo próprio.
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