[Terra Morta RPG] Capítulo 18 - Beatriz



Acordou com o som das batidas na porta.
            Sobressaltada, Bia olhou ao redor, e por um momento sentiu-se mais tranquila por estar novamente na cozinha do bar. Mas as batidas voltaram a se fazer ouvir, tratando de lembrá-la do que a aguardava do lado de fora. Estremeceu.
            – Dormiu bem? – ouviu às suas costas, e quando se virou para encarar Marcos, o encontrou debruçado no balcão, os olhos verdes espreitando por debaixo do emaranhado de fios loiros que era sua franja, encarando-a.
            – Sim, eu acho – disse ela. – Você não descansou?
            – Não consigo. Não com essas coisas aí fora.
            Marcos era quem a havia salvo naquela manhã. Era grata por aquilo, sim, mas também se sentia culpada por comprometer o abrigo do rapaz; quando a porta se abrira, Bia entrou sem hesitar, mas os mortos que a seguiam mostraram serem mais rápidos do que ela poderia ter imaginado e, no segundo seguinte, antes que Marcos tivesse a chance de voltar a fechar a porta, eles tinham invadido o lugar.
            Correram para a cozinha, e ali permaneceram durante todo aquele tempo. Antes de pegar no sono, Bia havia prometido a si mesma de questionar o outro a cerco do terraço em que o vira, quando em fuga na avenida lá fora. Quem sabe através do terraço tivessem a chance de escapar dali.
            – Podemos chegar lá partindo daqui, da cozinha – disse ele quando Bia perguntou.
            Guiou-a até uma porta nos fundos do cômodo, a qual até então ela não havia notado, e esta deu passagem a uma pequena área repleta de caixas e sacos de lixo, cercada por um grande muro de tijolos. Deve ter uns seis metros de altura, deduziu. A escada de ferro era fixada junto da parede do bar, seguindo na horizontal até que alcançasse a parte de cima, ainda mais alta que o muro.
            – Não tenha medo – Marcos lhe deu um tapinha de encorajamento nos ombros, quando reparou na expressão receosa no rosto dela. – O segredo é não olhar para baixo – sorriu.
            – Clichê – ela lhe devolveu o sorriso, e uma gargalhada estourou nos lábios do rapaz.
            – Só se você olhar. Pode ir, vou logo atrás de você.
            E ela foi. Com as mãos, se segurou no degrau mais alto que alcançou e puxou o corpo para cima. Os degraus se distanciavam um do outro por cerca de quarenta centímetros, o que a obrigou a esticar as pernas ao máximo para que alcançasse o próximo. Sentiu as palmas das mãos começarem a suar, e por um momento pensou em olhar para baixo, só para checar como Marcos estava se saindo mediante a subida. Mas mudou de ideia quando se lembrou do ultimo comentário do rapaz.
            Aquilo lhe arrancou mais um sorriso, e focou unicamente na subida. Quando deu por si, estava no terraço. O céu acima de sua cabeça ainda estava cinzento, carregado, sem dar brecha para qualquer sinal de que o sol estava para chegar. Só espero que não volte a chover enquanto estivermos aqui em cima.
            O terraço era plano, totalmente cimentado e ladeado por pequenas amuradas que, Bia julgou, não deviam ter mais de um metro. Quando viu a cabeça de Marcos apontar no topo da escada, esticou o braço e o ajudou a subir os últimos degraus. Então, juntos, seguiram até a borda.
            A rua estava lotada de mortos-vivos.
Homens e mulheres. Velhos, jovens e até mesmo crianças. Todos se aglomeravam numa multidão assassina ao redor da entrada do bar.
            – São muitos – sussurrou, sentindo um arrepio lhe subir a espinha.
            – Deve haver uns trinta deles aí, talvez mais – Marcos também não conseguia desviar os olhos de toda aquela gente lá embaixo. – Sem contar os que estão dentro do bar.
            Bia correu os olhos pela avenida, mas não viu nenhum outro zumbi senão os que povoavam a área ao redor de onde estavam. Um olhar mais atento revelou um deles, perdido entre os carros. Era jovem, e pareceu tentar se esconder quando viu a multidão. Tinha um dos braços enfaixados, e o outro jazia esticado para o lado, como que segurando alguma coisa inexistente. Podia jurar tê-lo visto falando com o vazio. Ele não é um deles.
            – Ei, você aí! – gritou.
            Os olhos do rapaz acompanharam o som de sua voz, mas se chegou a vê-la, fingiu não tê-lo feito. O viu se esgueirar para dentro de um beco, e no momento seguinte ele havia desaparecido.
            – O que foi isso? – Marcos quis saber. – Com quem estava falando?
            Bia sentiu-se corar.
            – Nada, eu só... Pensei ter visto algo. Esqueça, deve ter sido imaginação.
            Voltou a olhar para baixo, e sentiu o peso de dezena de olhares fixados em si. Os mortos tinham ouvindo-a gritar, e naquele momento não faziam mais nada senão esticar os braços em sua direção, as bocarras escancaradas em berros inumanos enquanto se chocavam uns contra os outros tentando chegar mais perto do bar. É como se implorassem para que eu me jogue lá embaixo. Como se pedissem para eu saciar sua fome de morte.
            – Não tem nenhuma maneira de escaparmos se não pela porta da frente? – perguntou a Marcos.
            – Poderíamos fugir pelo banheiro – ele respondeu. – Mas para isso teríamos que atravessar o bar. Não dá pra saber quantos deles estão do lado de dentro.
            – Se ao menos houvesse uma maneira de distraí-los – Bia se ajoelhou ao lado da amurada, os olhos correndo por cada um dos rostos distorcidos, lá embaixo.
            – Acho que sei de um jeito – ouviu Marcos dizer, e quando se virou para encará-lo, o rapaz já descia a escada rumo ao bar.

• • •

Quando retornou, algum tempo depois, trazia consigo três coquetéis molotov. Bia estremeceu, já prevendo o que estava por vir.
            – Cachaça – Marcos disse com uma gargalhada. – Que tal um golezinho, só pra animar um pouco as coisas? – Bia forçou um sorriso, tentando não demonstrar o quão insegura estava em relação àquilo. – Hora do show.
            Acendeu o primeiro explosivo e o atirou no meio da multidão.
            A garrafa foi engolida pelo aglomerado de corpos. Sequer ouviu-a se quebrar, mas viu as chamas se erguerem num estrondo incandescente. Línguas de fogo rodopiaram para cima dos mortos, que gritaram de dor e fúria quando as sentiram lambendo suas vestes, consumindo-as para que alcançassem a carne. O cheiro acre de carne queimada se ergueu no ar junto da fumaça, e os que ainda não tinham sido pegos pelo fogo começaram a correr.
            – Ah, não vão fugir, não – Marcos gritou, e atirou a segunda garrafa.
            Essa se quebrou na cabeça de uma mulher que, em fuga, se curvou contra o próprio corpo quando o fogo se espalhou, através dela, para os zumbis que a rodeavam.
            – Sua vez – Marcos entregou a terceira garrafa para Bia.
            Ela tremia. Olhou para os cadáveres que ardiam no asfalto lá embaixo, e para os poucos zumbis que lutavam para escapar do inferno em que a avenida havia se transformado. Ouviu-os gritar, urrar e se debater, tomados pela dor. Então o viu no meio da multidão flamejante: sei pai. Por um momento, todos aqueles que morriam lá embaixo se pareceram com ele.
            Bia sentiu os olhos se enchendo d’água, mas não sabia se pela fumaça, pelo remorso, ou simplesmente pelo terror daquilo que presenciava. Não posso. Não consigo, pensou. Mas quando esticou o braço para devolver a garrafa a Marcos, o mesmo tomou o ato como um incentivo para que a acendesse. E foi o que fez.
            Pega de surpresa, Bia agiu por instinto, e atirou a garrafa para longe dali. Olhou para baixo a tempo de ver o molotov explodir contra um carro no acostamento. O veículo se incendiou mais depressa do que ela julgava ser possível.
            Então veio a verdadeira explosão.
            Um cogumelo de fogo e fumaça negra se levantou em direção ao céu, e as chamas consumiram tudo o que estivesse próximo o suficiente para que fossem devorados por seu ardor infernal. Bia sentiu Marcos puxá-la para o chão, e mesmo dali de cima pôde sentir o calor sufocante provindo do fogo.
            – Puta merda! – ouviu Marcos gritar em seu ouvido quando a abraçou, usando o próprio corpo para que pudesse protegê-la.
            Então tudo se silenciou. Não ouviam mais os gritos dos zumbis, ou o som de seus passos rápidos contra o asfalto. Somente o lento crepitar das chamas. Marcos a ajudou a ficar de pé, e quando olharam por sobre a amurada não viram muito além de uma nuvem de fumaça negra e densa que lhes prejudicava a visão do que estava acontecendo lá embaixo.
            – Vem, é a nossa chance! – o rapaz a puxou pelo braço e a conduziu até a escada.
            Dessa vez Bia olhou para baixo. Sentiu os olhos lacrimejarem devido à fumaça quando começou a descida, mas a mesma se mostrou mais fácil do que a subida. Quando deu por si, estava novamente no térreo.
            Correram para a cozinha, onde apanharam uma faca cada um e, pela primeira vez em horas, abriram a porta. A fumaça invadiu o cômodo quase que instantaneamente. O calor por si só era insuportável, e a dificuldade para respirar fez com que hesitasse.
            – Segura minha mão – Marcos disse. – Agora, vem comigo.
            Com a mão livre, ela tapou o nariz, e juntos adentraram na escuridão.
            Bia fez o possível para segurar a respiração enquanto era puxada pelo outro, mas quando não aguentou mais, puxou uma golfada de ar. Sentiu os pulmões arderem, e foi repentinamente acometida por uma tontura.
            Com a vista embaçada, olhou para os lados e viu algumas silhuetas se agitando na fumaça. Estamos salvos, estão aqui para nos salvar, pensou ela, tomada pelo delírio. Então a primeira se jogou contra Marcos, e o rapaz se desvencilhou para o lado bem a tempo de escapar da investida. Ouviu-o gritar alguma coisa, mas não conseguiu distinguir qualquer palavra. O sentiu puxando-a mais uma vez, então fechou os olhos e deixou-se levar.
            Por um momento achou que não conseguiriam. Um baque surdo chegou a seus ouvidos, fazendo com que suas têmporas latejassem. Quando abriu os olhos, estavam no banheiro. Bia caiu de joelhos e lutou para respirar, aproveitando que a fumaça não havia tomado conta daquele lugar.
            Ouviu urros e gritos vindos da porta aberta, e quando olhou para Marcos o ouviu gritar para que ela se apressasse. Quando se pôs novamente de pé, correu para dentro da cabine sanitária que o rapaz lhe indicara. Marcos fechou a porta no momento exato em que os zumbis invadiram o banheiro, e Bia estremeceu junto da porta de madeira que estava entre ela e eles. Sua única proteção.
            O rapaz tratou logo de abrir a janela. Era pequena e bastante estreita, mas larga o suficiente para que pudessem se esgueirar para fora dali.
            – Você primeiro, vai! – Marcos bradou e correu para a porta, forçando o próprio corpo contra a madeira para tentar conter o impacto dos zumbis que, do outro lado, faziam de tudo para entrar.
            Bia não desobedeceu. Equilibrou-se nas bordas do vaso sanitário e impulsionou o corpo para cima, em direção à janela. Do lado de fora da cabine, os inimigos martelavam a frágil porta de madeira com os punhos, tentando alcançá-los. Aquilo fez com que ela se esforçasse ainda mais para fugir.
            – Depressa! – gritou Marcos quando ela já havia projetado metade do corpo para fora da janela. – A porta está quase cedendo!
            Bia olhou para baixo. No chão, a quase dois metros abaixo da janela, havia um amontoado de volumosos sacos pretos, recheados de lixo e entulho. Então impulsionou o corpo para frente e simplesmente deixou-se cair. Voltou a se pôr de pé e olhou para cima. De Marcos nem sinal. Quando olhou ao redor, descobriu-se em um beco bastante largo, na parte de trás do bar. Não viu qualquer sinal de inimigos por ali.
            – Não vou conseguir – ouviu Marcos gritar, ainda lá dentro, quando uma nuvem escura de fumaça se esgueirou para fora da janela. O incêndio havia chegado ao banheiro. – Não vou conseguir segurar a porta por muito tempo. Se eu a soltar, me pegam enquanto subo!
            Não, isso não pode estar acontecendo.
            – Vem, Marcos! – gritou a todo pulmão. – Você consegue!
            – Não dá! – a voz do outro estava rouca e ofegante, e Bia teve de se esforçar para ouvir o que ele estava dizendo. – Fecharei a janela. Ao menos assim não poderão segui-la.
            – Não, Marcos. NÃO! – Bia tentou escalar novamente a parede, mas não era alta o suficiente para alcançar a janela dali.
            – Fique viva, Beatriz. Por mim.
            Então era escutou o barulho da porta se abrindo com violência, e os gritos daqueles que tentavam entrar fizeram-se ouvir do lado de dentro da cabine, ecoando por todo o banheiro. Não chegou a ouvir Marcos gritar, mas viu a janela se fechar num baque, selando-o lá dentro para sempre.
            Recomeçou a chorar, e dessa vez não fez qualquer esforço para tentar conter as lágrimas que, livres, misturaram-se à fuligem que lhe cobria a fronte. Olhou mais uma vez para cima, para a janela, mas não ouviu qualquer som vindo do de dentro do banheiro. Em pesar, Bia se abaixou e apanhou a faca que deixara cair quando escapou.
            – Por você – disse. E começou a correr.





O texto acima não tem qualquer vínculo com a história original de Terra Morta e nem foi escrito por Tiago Toy. É uma adaptação do RPG mestrado no Orkut por Luan Matheus, escrita pelo próprio.

1 mordidas:

Anônimo disse...

Muito boooooommm!!

Se continuar dramático assim eu choro haha

25 de junho de 2013 às 02:25

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