[Terra Morta RPG] Capítulo 15 - Nicholas



A estátua, um soldado esculpido em mármore, era alta e projetava uma grande sombra sobre eles. Era circundada por uma vala estreita, onde haviam se escondido quando chegaram na praça, e esta, por sua vez, era cercada por uma grade de aproximadamente dois metros de altura.
                Os zumbis – como se acostumara a chamá-los, afinal, o que mais poderiam ser? –haviam se espalhado por todos os cantos, caçando-os, mas até o momento nem sinal de que tivessem sido descobertos. Arriscava dizer que havia pelo menos dez deles, muito mais do que ele e Matt conseguiriam lidar sozinhos.
                – O que faremos? – ouviu o rapaz sussurrar ao seu lado.
                – Não sei – admitiu. – Talvez devêssemos esperar eles irem embora.
                – Se forem embora.
                Nick se levantou para que pudesse espiar o lado de fora, e Matt fez o mesmo. Viu três deles caminhando entre um dos grandes canteiros que enfeitavam a praça. As flores, já secas, iam se quebrando conforme avançavam, pisoteando-as sem aparentar se darem conta daquilo. Outro, parado ao lado de um banco, parecia farejar o ar enquanto vasculhava o perímetro com os olhos atentos. Não chegou a ver o restante deles.
                Mais além havia um grande chafariz esculpido na forma de um anjo, os olhos de pedra encarando os próprios pés enquanto os braços, erguidos, acompanhavam as grandes asas cinzentas que se abriam em direção ao céu. Era banhado por uma enorme piscina de calcário, de águas escuras e sujas, profundas. Havia um cadáver boiando lá dentro.
                Voltaram a se abaixar.
                – Acho que... – Matt hesitou. – Acho que tenho um plano.
                – Sim?
                – O chafariz – disse ele. – Se pudéssemos, de alguma forma, prendê-los naquela piscina...
                Matt deixou a fala morrer, e Nick refletiu quanto àquela ideia. Era um plano arriscado, aquele. Mesmo que os inimigos ficassem, de fato, presos na piscina, corriam o risco de serem pegos enquanto os atraíssem para lá.
                – Não sei se devemos correr o risco – Nick concluiu. – Nem ao menos sabemos se esses malditos sabem nadar, seria arriscar demais.
                – Às vezes é necessário correr riscos – Matt disse com um sorriso desanimado. – Mas, se não isso, o que, então? Ficar aqui dentro até que nossos mantimentos acabem? Ou melhor, até que sejamos descobertos e mortos?
                – Podemos ser mortos tentando realizar esse seu plano suicida.
                – A morte vem para todos, uma hora ou outra.
                – O que não quer dizer que devamos correr ao encontro dela de braços abertos.
                Encararam-se por um longo momento. Matt recostou-se no suporte de mármore que sustentava a estátua acima de suas cabeças, e tomou um longo gole d’água enquanto olhava para o céu. As nuvens continuavam carregadas, cinzentas, e era provável que fossem acometidos por mais um pé d’água logo, logo.
                – Eu vou – ouviu Matt dizer, de repente.
                Nick o olhou sem entender exatamente ao que o outro se referia. Então, de súbito, compreendeu.
                – Não, Matt. Você morrerá se fizer isso – alertou.
                Nick tentou dissuadi-lo e o convencer do contrário, mas Matt se mostrou irredutível quanto a voltar atrás em sua decisão. Iria bancar o herói, sim, e provavelmente pagaria com a vida por aquele ato impulsivo.
                – Você fica com minha mochila – disse ele, entregando-a a Nick. – Vou levar apenas a arma – retirou o esperto de churrasco do cinto –, para o caso de precisar me defender. Agora, vou te explicar o que pretendo fazer...


                Matt atravessou sorrateiramente o portão para fora da vala, tentando não fazer qualquer barulho que pudesse revelar sua posição. Nick ergueu a cabeça apenas o suficiente para que pudesse enxergar além da grade, apenas o suficiente para que pudesse assistir o desenrolar daquele plano insano.
                – Assim que perceber que o caminho está livre, corra – Matt sussurrou, sem olhar para o lado de dentro. – Nos encontramos no lugar combinado.
                Nick assentiu. O lugar combinado era uma escadaria que se erguia entre dois prédios, do outro lado da rua na extremidade oposta da praça, próximo a uma pequena igreja que podia ser vista não muito longe de lá.
                Sentiu um aperto no estomago quando Matt começou a correr. Os gritos começaram a se fazer ouvir conforme os zumbis iam se dando conta do que estava acontecendo. O primeiro a alcançar o rapaz tentou segurá-lo, aos berros, mas Matt brandiu o espeto com destreza, e o golpe abriu uma segunda boca na garganta do infeliz, pela qual vomitou um jato de sangue escuro antes de tombar no chão, vencido.
                Mais dois se aproximaram, e Matt atingiu o primeiro no ombro, sem efeito. O segundo se atirou em sua direção, mas ele se mostrou mais rápido, esquivando-se para o lado antes que fosse pego. A estocada seguinte atingiu um deles nas costelas. Nick viu a lâmina deslizar para dentro do corpo do filho da mãe, que tombou para o lado e levou o espeto consigo.
                Matt estava desarmado, e o restante dos zumbis se aproximava cada vez mais. Com um grito o rapaz chutou o inimigo remanescente e recomeçou a correr, dessa vez em direção ao chafariz, com todos os outros em seu encalço.
                Aquela era sua deixa para agir.
                Nick se ergueu, uma mochila em cada ombro, e começou a correr pela praça, ciente de que todos os mortos estavam ocupados demais para notá-lo. Também trazia sua própria arma em mãos, pronto para acertar qualquer inimigo que tivesse ficado para trás.
                E, de fato, havia um. Mal teve tempo de se jogar para o lado quando a mulher investiu contra ele vinda de um dos canteiros. Ela se estatelou contra o chão, mas não teve qualquer dificuldade para se levantar e atacar novamente.
                Nick a atacou, e viu uma linha vermelha se desenhar em seu rosto quando o espeto lhe cortou a bochecha. A maldita recuou alguns passos, urrando como um animal ferido, e então voltou a investir. O chute a acertou bem no estômago, e quando ela caiu, não hesitou num só momento antes de perfurar sua cabeça.
                Nos filmes, era assim que faziam para matá-los. Acertando a cabeça.
                O repentino som dos sinos da igreja, tocando, o fez voltar sua atenção para a praça. Matt se aproximava do chafariz. Nick recomeçou a correr enquanto assistia aquele espetáculo macabro: os zumbis se aglomeravam uns contra os outros conforme tentavam alcançar o rapaz que, sem alternativas, não fazia nada além de continuar correndo.
                Matt alcançou a borda da piscina e, com um salto, mergulhou. No segundo seguinte havia desaparecido. Para surpresa de Nick, os inimigos o imitaram e, um a um, Nick os assistiu se jogando para dentro da água negra. Uns pulavam por si só, enquanto outros eram arrastados por aqueles que caíam acidentalmente.
                No fim, todos haviam sido engolidos pela água.
                Não morra, pensou. E então desviou o olhar e se focou em seu próprio percurso. O relógio da igreja, reparou enquanto corria, marcava quatro horas. Não lembrava de ter se passado tanto tempo desde que amanhecera. Tudo aconteceu tão depressa, sorriu amargamente. O tempo voa quando a gente se diverte.
                Quando alcançou a escadaria, tratou logo de se certificar de que o lugar estava seguro e livre de inimigos. Não havia ninguém ali exceto um cadáver, um rapaz, para lhe fazer companhia. Completamente nu, jazia estirado em um dos degraus, os olhos sem brilho arregalados, encarando o céu cinzento. Tinha a barriga mutilada, e suas tripas saltavam para o lado de fora como serpentes negras e secas.
                Aquela visão o deixou enjoado, então desviou o olhar. Dali não tinha uma visão muito clara do chafariz, e concluiu que estivera distraído demais com sua própria fuga para ter reparado se Matt havia ou não conseguido sair da piscina. Os zumbis ainda estavam lá dentro, disso sabia. Podia ouvir o barulho da água acompanhado dos gritos gorgolejantes daqueles que ainda lutavam para sair daquela prisão. Mas de Matt, nem sombra.
                Ouviu a primeira trovoada quando voltou para o meio da rua, e quando vasculhou o perímetro em busca de Matt, a chuva começou a cair. Correu para debaixo da cobertura de um dos prédios e esperou pelo que lhe pareceram dez, talvez vinte minutos.
                – Eu avisei – viu-se dizendo em voz alta. – Avisei que essa droga de plano lhe custaria a vida.
                – Tem certeza? – ouviu uma voz às suas costas.
                Encharcado da cabeça aos pés, Matt se esgueirava entre dois carros acidentados para ir ao seu encontro. Quando ficaram frente a frente, começou a rir. Nick o acompanhou, e logo ambos estouraram numa gargalhada alta e farta, que se prolongou até que nenhum dos dois aguentasse mais sorrir.


                Os sinos da igreja voltaram a tocar, avisando que uma hora havia se passado. A chuva não mostrava qualquer sinal de clemência, mas decidiram sair de lá mesmo assim. Não podemos nos demorar demais, mais deles podem aparecer por aqui.
                Aquele era um dos bairros de classe alta da cidade, e em todas as ruas viam-se cercados por grandes e luxuosos prédios. A destruição ali não parecia tão evidente quanto no restante da cidade, e não viram sinal de inimigo algum enquanto caminhavam sob a chuva.
                – Será que essa parte da cidade não foi afetada? – Nick ponderou.
                – Acredito que não. Talvez tenha sido um dos últimos bairros a serem atacados, mas duvido muito que tenha escapado da infestação – Matt apontou para a entrada de um prédio. – Ali, está vendo todo aquele sangue?
                De fato, toda a fachada estava decorada em vermelho. Toda a cidade parecia ter aderido àquela moda macabra, tingindo-se com o sangue de seus antigos cidadãos. Nick ainda se lembrava do dia em que tudo aquilo começou: Estava no shopping, acompanhado de alguns amigos, e quando foi ao banheiro ouviu os primeiros gritos vindos do lado de fora. Assim que se deu conta do que estava acontecendo, se trancou em uma das cabines.
                Fui salvo pela minha bexiga.
                Aquele pensamento lhe arrancou uma risada.
                – Do que está rindo? – Matt quis saber.
                – Nada, eu só... Espera – apurou os ouvidos. – Ouviu isso?
                Matt afirmou com um aceno, e os dois se calaram para que pudessem ouvir melhor, mas o som não voltou a se repetir. Era como se algo houvesse se colidido contra alguma parede, em algum lugar ali perto.
                – Um acidente, talvez?
                – Alguém pode estar correndo perigo – Matt observou.
                Correram na direção da qual julgaram ter ouvido o estrondo, o que os levou através de um beco largo que ligava as duas ruas, ladeando um terreno baldio. Avançaram devagar, um passo atrás do outro, Nick na dianteira com o espeto sujo de sangue erguido na altura dos olhos.
                Então o portão que levava ao lote se abriu com um baque, e de dentro dele saltou um rapaz. Era alto, de cabelos loiros erguidos num penteado rebelde. Tinha os olhos verde-acinzentados, naquele momento carregados por um olhar de espanto e surpresa. Não foi preciso reparar em sua respiração ofegante para perceber que estava em fuga.
                – Corram – foi tudo o que ele disse, e passou por entre os dois em disparada.
                Nick e Matt se entreolharam, confusos, e então ouviram os gritos e urros vindos de onde o rapaz havia surgido. Sabiam o que estava por vir, e não ansiavam por ficar ali para recepcionar aqueles que estavam chegando.
                Seguindo o conselho do desconhecido, começaram a correr.




O texto acima não tem qualquer vínculo com a história original de Terra Morta e nem foi escrito por Tiago Toy. É uma adaptação do RPG mestrado no Orkut por Luan Matheus, escrita pelo próprio.

0 mordidas:

Postar um comentário